[MOBILE] Fora da pauta: em 76% das cidades brasileiras, não existem jornalistas oficialmente registrados
- Diogo Leite

- 11 de jul. de 2024
- 6 min de leitura
Atualizado: 15 de jul. de 2024
Minas Gerais é o estado com mais cidades sem jornalistas. Dados revelam queda de salários e aumento da pejotização na profissão, mas ignoram o surgimento de veículos inovadores
Quase um terço dos brasileiros vive em cidades onde não há nenhum jornalista formalmente registrado. Em 67% delas, nenhum jornalista foi contratado com carteira assinada desde 1985, quando dados sobre ocupação profissional começaram a ser coletados. A maior parte das cidades atualmente sem jornalistas fica no Nordeste, onde há 1482 municípios nessa situação. Minas Gerais, no entanto, é o “campeão” nas duas listas: são 695 cidades sem jornalistas hoje, e 503 sem nenhum em toda a série histórica. Isso corresponde a 81% e 59% dos municípios do estado, respectivamente.
Os dados são da RAIS (Relação Anual de Informações Sociais), uma base do Ministério do Trabalho que congrega informações fornecidas por todos os empregadores do Brasil sobre funcionários contratados com vínculos de pessoa física.
Muitas cidades que tinham jornalistas com carteira assinada também se tornaram, nos últimos anos, territórios “fora da pauta”. Entre 2003, o pico de registros, e 2022, 160 municípios viram seus jornalistas regularmente registrados desaparecerem. Hoje, nenhum deles conta sequer com MEIs (Microempreendedores Individuais) registrados em categorias de atividade geralmente ocupadas por jornalistas (locução, fotojornalismo, edição de textos ou redação).
Em geral, as cidades “fora da pauta” são pequenas. 81% têm menos de vinte mil habitantes, e todas estão no interior do país. A ausência de jornalistas transforma muitos desses territórios em “desertos de notícias”, como são chamados locais que não estão sob a cobertura de nenhum veículo de imprensa formal.
Um exemplo é Capitólio (MG), a 278 quilômetros de Belo Horizonte. Lá, a informação circula no “boca a boca” e nos canais oficiais da prefeitura. Terezinha Deusdete, aposentada que vive há pouco mais de uma década longe da cidade, sua terra natal, conta que se informa sobre o município apenas pelas redes sociais e por amigos que ainda vivem lá.
Quando ainda morava em Capitólio, era nos alto falantes da igreja e numa rádio amadora que corriam as notícias do dia. “Depois, um moço começou a fazer um boletim mensal, que a prefeitura ajudava a imprimir, mas isso é bem recente”, conta.
Já em Fruta de Leite, também em Minas Gerais, a 615 km da capital, o jornalismo fica por conta de uma página no Facebook, atualizada com pouca frequência. “A gente fica sabendo é pela família mesmo, não tem nenhuma rede que fale sobre lá”, conta Jaqueline Borges, manicure fruta leitense que vive hoje na região metropolitana de São Paulo.
“Achei estranho. Meu registro é…”
Antônio Madruga, bacharel em administração, empresário e radialista, começa a conversa assim, apresentando seu registro profissional. Embora não conste na base de dados da RAIS como um jornalista com carteira assinada, ele exerce o jornalismo em Chuí (RS), extremo sul do país. Assim como outras 45 cidades do Rio Grande do Sul e 959 do Brasil, Chuí nunca teve um jornalista registrado na base do Ministério do Trabalho, mas não é considerada um deserto de notícias, pois tem veículos de imprensa com periodicidade determinada e que atendem a preceitos básicos do jornalismo, segundo o mapeamento do Atlas da Notícia.
Em Chuí, o único veículo de imprensa mapeado é uma rádio comunitária, da qual Antônio é cofundador e onde apresenta o único programa jornalístico da grade, o diário “Almanaque 87”.
Segundo Antônio, as notícias chegam até a rádio por meio dos próprios moradores, que frequentemente vão à sede da emissora sugerir pautas. “Muita gente do lado uruguaio vem falar aqui também, coisas que não podem dizer por lá”, conta ele. A cidade faz divisa com Chuy, já no país vizinho.
Essa não é a primeira incursão de Antônio no jornalismo. Há alguns anos, ele abriu um jornal impresso na cidade, com matérias em português e em espanhol. A empreitada acabou por conta de perseguições políticas. “Em cidades pequenas assim, nós jornalistas somos tipo Dom Quixote, lutando contra grandes moinhos de vento”, diz ele ao relembrar inúmeros casos em que empresários e políticos locais promoveram boicotes à rádio e a outros projetos jornalísticos que contrariavam seus interesses.
O rádio é a mídia mais comum nas cidades sem jornalistas que possuem veículos de imprensa. Eles existem em 64% delas, enquanto 50% contam com portais de notícias online, 23% com jornais impressos e apenas 7,5% com televisões locais.
Em alguns lugares, veículos mais antigos se tornaram multiplataforma. É o caso do portal Boa Nova Notícias, de Itaú de Minas (MG). Lançado em 1996, como uma rádio, em 2007 o grupo passou a englobar também um portal de notícias online.
Segundo a equipe do portal, lá as peculiaridades da atividade jornalística são outras: como na cidade a maioria das pessoas se conhece, o jornal opta por não divulgar nomes nem iniciais de envolvidos em ocorrências policiais, por exemplo. Já para apurar informações, a equipe vai diariamente à delegacia da cidade ler os Boletins de Ocorrência registrados no dia anterior.
Os dois veículos têm uma coisa em comum: o trabalho jornalístico é feito por pouquíssimas pessoas, geralmente em caráter voluntário. Na Rádio Chuí, não há nenhum funcionário registrado: todos que contribuem com a emissora subsistem graças a outras atividades. Antônio, por exemplo, é dono de uma empresa que trabalha com sonorização de ambientes.
Já o portal Boa Nova conta com um redator, que também é apresentador e faz entrevistas, e um repórter voluntário, além do próprio diretor do jornal, que ajuda nas apurações. Na equipe toda, ninguém cursou jornalismo.
De acordo com Lina Rocha, presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais, retomar a exigência do diploma para o exercício do jornalismo é uma das principais bandeiras da instituição atualmente. "O que percebo no comando da entidade é que, no interior, profissionais contratados em cargos como 'produtor de conteúdo' ou 'analista de redes sociais' acabando exercendo as funções de um jornalista, burlando regras e acordos como o piso salarial da profissão", conta.
Lina explica que o Sindicato, que tem 1.059 associados no interior do estado, tenta acompanhar as demandas dessas localidades por meio de diretorias regionais (são quatro espalhadas pelo território mineiro). Ainda assim, ela reconhece que o tamanho do estado e as dificuldades financeiras advindas do fim do imposto sindical dificultam bastante esse processo.
“O jornalismo sempre foi precarizado. Qual a diferença?”
Roseli Figaro é professora e pesquisadora da USP (Universidade de São Paulo), e há mais de vinte anos se dedica a estudar o trabalho dos jornalistas. Ela lembra que, quando começou suas pesquisas nessa área, uma colega lhe questionou: “mas o jornalismo sempre foi precarizado. Qual a diferença hoje em dia?”
Para Roseli, o ponto chave para se entender essa diferença é quando, em meados dos anos 1980, os computadores chegam às redações. “A partir daí, começa um processo de demissões em massa e de precarização do trabalho”, explica.
De fato, os dados da RAIS mostram que, entre 1985 e 2022, o salário médio dos jornalistas caiu 47%, de 8,9 para 4,7 salários mínimos ao mês. Ao mesmo tempo, a carga horária média saltou de 33,6 para 37 horas semanais entre 1994 e 2022. Já o número de MEIs abertos nas categorias geralmente ocupadas por jornalistas chegou a 12.339 em 2024, o que equivale a 24% do total de jornalistas registrados na RAIS no período. Essas tendências, segundo Roseli, afetam as mais diversas profissões, e são fruto da ascensão de políticas neoliberais e de métodos de gestão como o toyotismo.
Em regiões interioranas, a professora aponta, a mídia é frequentemente monopolizada por grupos familiares, que a utilizam como um braço de sua influência política e econômica. Além disso, nessas regiões, as dificuldades de financiamento de veículos jornalísticos são ainda maiores do que em grandes cidades. Isso, afirma Roseli, favorece a prevalência de jornalistas “pejotizados” (contratados com vínculos de pessoa jurídica, não registrados pela RAIS) nesses municípios. Mesmo assim, a maioria dos municípios sem jornalistas registrados na RAIS também carece de MEIs em ocupações ligadas ao jornalismo: das 4.320 cidades sem jornalistas, apenas 15 têm MEIs nessas categorias.
Por outro lado, a professora chama atenção para as possibilidades que as novas tecnologias trouxeram para o jornalismo no interior. “Em muitas cidades, emergiram novos arranjos midiáticos capazes de competir com os monopólios de famílias tradicionais, melhorando o acesso à informação”, diz ela. Isso acontece mesmo onde os jornalistas não estão registrados formalmente, ou onde o Atlas da Notícia enxerga apenas desertos informacionais.
Por isso, para Roseli, a análise do Atlas ou da RAIS, isoladamente, pode superestimar a presença desses desertos. "É preciso pensar melhor o critério para se definir um deserto de notícias, indo além da presença ou não de empresas jornalísticas tradicionais”, afirma a professora.
Os códigos Python e tabelas utilizados na produção dessa reportagem estão disponíveis nesse repositório GitHub.







